A tragédia que assola a população e a biodiversidade do Rio Grande do Sul precisa ser encarada com seriedade, observando o cenário de crise climática no qual estamos inseridos. Fora isso, é negacionismo.
Confira, abaixo, as manifestações do presidente da Agapan, Heverton Lacerda (foto ao lado) na imprensa que busca contextualizar a tragédia.
'Como uma bola de neve'
Presidente da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Apagan), Heverton Lacerda avalia que a recorrência de tragédias ambientais no estado é consequência de uma crise climática mundial e que não há uma solução a curto prazo para evitar novas enchentes.
— É preciso deixar o negacionismo de lado e perceber que as catástrofes estão ficando cada vez mais intensas. Como uma bola de neve que só cresce. A ciência em nível internacional vem apontando isso. O que se pode fazer no momento é verificar em cada cidade quais são os pontos mais frágeis e buscar medidas para contornar a crise — diz.
Lacerda afirma que, embora o Rio Grande do Sul seja precursor no Brasil na criação de entidades de defesa do meio ambiente, houve diminuição de áreas preservadas com a expansão do agronegócio, em especial da silvicultura.
— Com o desmantelamento do código ambiental do estado, cresce o desmatamento e as chuvas têm jogado terra para dentro de leitos dos rios. Isso faz com que eles transbordem e afetem moradias — aponta.
Entre 2013 e 2023, o Rio Grande do Sul foi o estado mais atingido por extremos climáticos no Brasil. Foram 2.758 decretações de situação de emergência e de estado de calamidade, segundo dados do Ministério de Integração e de Desenvolvimento Regional.
Tragédia anunciada
"O negacionismo precisa ser deixado de lado, já que as catástrofes estão ficando cada vez mais intensas", diz Heverton Lacerda, da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan).
"Os atuais governos, tanto do estado quanto da prefeitura da capital e outras cidades do interior, estão sob comando de negacionistas climáticos. Isso fica exposto pelas políticas que eles encaminham”, declara Lacerda à DW.
Lacerda cita como exemplo um projeto de lei de autoria do deputado Alceu Moreira (MDB-RS), aprovado na Câmara dos Deputados em março último. A medida autoriza o corte de vegetação nativa não florestal – como Pampa, parte do Cerrado e do Pantanal. Na prática, mais de uma área equivalente aos estados do Rio Grande do Sul e Paraná de mata nativa podem sumir do mapa se a lei passar no Senado.
Sul 21 | Tragédia histórica expõe o quanto governo Leite ignora alertas e atropela política ambiental
Poucos dias antes do início das chuvas que infligem ao Rio Grande do Sul a sua maior tragédia climática, a Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan) enviou ao governador Eduardo Leite (PSDB) um ofício com o incomum título de “Alerta ao Estado do Rio Grande do Sul e ao Governador do Estado”, seguido pelo subtítulo que dizia: “Registro para fins de tomada de conhecimento sobre alertas emitidos há várias décadas”. O documento foi entregue no último dia 26 de abril.
Logo no início, o ofício deixa claro o objetivo de avisar o governador de que o mundo “está enfrentando uma crise climática”. Antes de parecer estranho que a entidade ambientalista mais antiga do RS e do Brasil se disponha a produzir um documento para informar Leite de algo amplamente discutido no planeta, o ofício revela a péssima relação do governador gaúcho com os ambientalistas do estado.
No documento, a Agapan enfatiza que a crise climática é divulgada pela ciência e imprensa há várias décadas e explica que o problema “tem o fator antropogênico como um de seus principais ingredientes de intensificação, sem desconsiderar outros de caráter cíclico e universal que possam somar”. Antropogênico, no caso, significa a ação do ser humano no meio ambiente.
O parágrafo seguinte do documento expõe a distância que separa o governador, apesar do figurino de colete da Defesa Civil quando a tragédia acontece, e os ambientalistas que há anos criticam as medidas adotadas pelo governo Leite.
“Neste sentido, alertamos que a falta de atitudes para estancar e reverter processos que contribuem para o avanço da crise – a exemplo da liberação de mais venenos agrícolas, da autorização para destruir Áreas de Preservação Permanente, da falta de uma política permanente de recuperação de matas ciliares, do incentivo anacrônico à construção de polos carboquímicos e de instalações de infraestrutura que não reconheçam os direitos das comunidades tradicionais, da falta de cuidados e ingerência dos recursos hídricos, entre outros – será motivo de proposta de Ação Civil Pública de nossa parte. É apenas um alerta com o objetivo claro de contar com a parceria para encontrar ‘soluções coletivas’ para estancar e fazer a nossa parte, enquanto povo gaúcho, para ajudar a reverter as mudanças climáticas.”
No ofício, a Agapan afirma não poder mais, por princípio de precaução diante da crise climática alertada há décadas, “ser complacentes com governos que têm demonstrado pouca ou nenhuma sensibilidade para a situação, em especial, da população mais vulnerável, que primeiro sofre e sofrerá com a ampliação do ritmo de avanço das mudanças climáticas”.
Presidente da Agapan, Heverton Lacerda pondera que a crise climática vivida no planeta pode levar séculos para ser revertida – ou nunca ser. A única chance é se, nos próximos anos e décadas, as sociedades conseguirem, de forma muito drástica, primeiro estancar tudo o que está causando e ampliando a crise climática, e depois realizar ações para a reversão.
“Não adianta apenas resiliência ou mitigação de danos. O que precisa ser combatido é a causa da mudança climática. O que os governos estão fazendo é ligado à questão da resiliência e da mitigação de danos, tirando a população de locais atingidos, mas vão continuar fazendo aquilo que causa a crise climática”, afirma, sem esconder na voz a insatisfação com os rumos da política ambiental.
Conforme explica o presidente da Agapan, Heverton Lacerda, a pauta das árvores acompanha a entidade desde o início da luta ambiental, nos anos 1970, quando Lutzenberger falava da importância da arborização nas cidades e dos cuidados com podas e planejamento urbano.
“Não há cidade saudável sem espaços ecológicos protegidos e bem cuidados. O meio ambiente é essa relação entre todos os seres, de todos os reinos, inclusive os humanos, que fazem parte da natureza. Não é ela e nós, somos nós juntos, uma coisa só, inseparável. Portanto, o cuidado que temos com o ambiente natural reflete diretamente em nós, que somos parte dessa natureza. Quando percebemos que para cuidar de nós mesmos precisamos cuidar do todo, adquirimos a consciência ecológica”, salienta.
Para Heverton, essa consciência está faltando nas pessoas, de modo geral. De acordo com ele os efeitos dessa carência se amplificam quando se trata de gestão pública. “Isso vem acontecendo em várias cidades. Temos nossa parcela de culpa nisso, pois não estamos conseguindo conversar com a população na intensidade necessária. Por isso, estamos realizando este Agapan Debate, que tem a cidade de Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul, como exemplo. Um exemplo negativo.”
Milanez conta que o antigo Código Ambiental levou quase dez anos para ser elaborado e a primeira tentativa de mudança, a pedido de Leite, era em regime de urgência, mas foi impedida pela Justiça. O processo então ocorreu 75 dias depois com a aprovação da Assembleia Legislativa.
A legislação original foi construída, segundo ele, em conjunto com as federações das indústrias e da agricultura, entidades ambientais e sociedade civil.
"O atual governador destruiu esse Código Ambiental. Nós pedimos debate com a sociedade, mas ele fugiu. Leite tem maioria na Assembleia Legislativa. O código era a maior obra-prima do consenso de um estado", critica o biólogo.
"No outro ano [2021], ele mudou a primeira lei de agrotóxicos do hemisfério sul do planeta [aprovada no começo dos anos 80]. Ele tirou o item mais importante dessa lei, que era o seguinte: nenhum agrotóxico pode ser licenciado no Rio Grande do Sul se não for licenciado no país de origem", ressalta.
Leia também
No dia 4 de maio, o presidente da Agapan conduziu um bate-papo no Instagram com os associados Neill Naiff, do grupo de jovens, Carlos Badia e Francisco Milanez. Confira aqui.
Comentarios