Alguns apontamentos sobre as alterações do Código Ambiental original (Lei 11.520/2000) feitas para flexibilizar leis e criar o substituto (Lei 15.434/2020)
Preliminarmente, diante da atual tragédia político-ambiental que intensificou a catástrofe decorrente do último evento climático e os efeitos sentidos pelos gaúchos, ressaltamos que faltou planejamento ambiental para a prevenção de desastres e recuperação de áreas afetadas por desastres naturais e antrópicos, conforme previsto no Art. 15, II, m, da Lei 15.434/20 (código ambiental substituto).
Destacamos, também, que, até o momento, o governo não encaminhou para votação o Zoneamento Ecológico-Econômico, uma ferramenta de apoio ao planejamento no território estadual, o que também deixa os municípios órfãos de estudos sobre as vulnerabilidades de cada região, assim como os empreendedores que ficam sem informações necessárias sobre as peculiaridades e potencialidades das regiões. O projeto foi financiado pelo Banco Mundial ao custo de R$ 9 milhões. Consórcio: Gitec GmbH | GITEC Brasil | Codex Remote | Aquaplan.
É importante informar que o processo de desmonte do sistema protetivo do meio ambiente iniciou com a inclusão do termo Infraestrutura ao nome da Secretaria Estadual do Meio Ambiente, que passou a ser chamada de Secretaria Estadual do Meio Ambiente e Infraestrutura, mantendo a sigla tradicional, SEMA. Na prática, o governo descaracterizou a Secretaria e a colocou à serviço dos grandes empreendedores do agronegócio e da mineração, entre outros, com a finalidade de facilitar licenciamentos. Outra evidência desse desmonte, além da troca do nome, foi a nomeação de Artur Lemos em 2018, que ocupou a pasta de Minas e Energia no governo Sartori. Atualmente, Lemos é o chefe da Casa Civil.
Elencamos, inicialmente, alguns pontos que consideramos desastrosos no processo de desconstrução do Código Ambiental original e seus consecutivos reflexos na fragilização do sistema protetivo natural dos biomas do Rio Grande do Sul.
- Os debates das propostas de alterações do Código Ambiental foram restritos a uma subcomissão da Assembleia Legislativa do RS.
- Mais de 480 alterações foram feitas em pouco mais de dois meses, enquanto o Código original foi amplamente debatido e construído ao longo de 9 anos com técnicos e participação da sociedade.
- As associações de servidores da Secretaria de Meio Ambiente e da Fundação de Proteção Ambiental (FEPAM) se manifestaram contrários à proposta, sendo totalmente ignoradas pelo governador, que sequer recebeu e acolheu a sugestão dos técnicos que executam a política ambiental no Estado do Rio Grande do Sul.
APPs
O Art. 180-A, acrescentado pela Lei nª 16.111, de 09/04/2024, afronta o artigo 2º, VI, do próprio código ambiental substituto, que define Áreas de Preservação Permanente (APP) como “áreas protegidas, cobertas ou não por vegetação nativa, com a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica e a biodiversidade, facilitar o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas”.
Art. 180-A. Para fins de licenciamento ambiental, ficam classificadas como de utilidade pública as obras de infraestrutura de irrigação e de interesse social as áreas destinadas ao plantio irrigado, na forma do art. 2º desta Lei, ficando condicionada a intervenção em Áreas de Preservação Permanente - APPs - à inexistência de alternativa técnica e/ou locacional à atividade proposta. (Artigo acrescentado pela Lei Nº 16111 DE 09/04/2024).
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VÁRZEA
O novo código apaga o conceito de Várzea, expresso no Código original, no Art. 14, LV, como “terrenos baixos e mais ou menos planos que se encontram junto às margens de corpos d’água”, incidindo na compreensão de Áreas sujeitas à inundação (11.520, XII), que “vão até a cota máxima de extravasamento de um corpo d’água em ocorrência de máxima vazão em virtude de grande pluviosidade”.
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INUNDAÇÕES
O código substituto permite parcelamento de solo sujeito a inundações (Art. 179). O código original previa a possibilidade de “providência para assegurar-lhes o escoamento das águas e minimização dos impactos ambientais” apenas para áreas alagadiças (Art. 192, Parágrafo único, II).
O código substituto gera insegurança jurídica nas áreas de várzeas e abre possibilidade para ocupação de áreas com riscos de inundações, sem definição clara na legislação ambiental.
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AUTOLICENCIAMENTO
Ao contrário do que o governador está dizendo, o autolicenciamento não é só para projetos de baixo impacto, é para médio também. A definição feita pelo Consema considera alguns empreendimentos de alto impacto como sendo de baixo impacto. O Conselho está aparelhado, em sua composição, de modo a votar favoravelmente - com votos contrários das entidades ambientalistas, ressalte-se - aos interesses econômicos em detrimento da proteção ambiental. Temos denunciado isso há muitos anos.
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NASCENTES
No Código original (Art. 14, XXXII): ponto ou área no solo ou numa rocha de onde a água flui naturalmente para a superfície do terreno ou para uma massa de água.
No código substituto (Art. 2 - XLI): afloramento natural do lençol freático em condições de perenidade ou intermitência, e que dá início a um curso de água.
Trata-se de mais uma definição que mostra o distanciamento do compromisso técnico da proposta, pois nem toda nascente inicia um curso de água. Ao tratar desta maneira, muitas nascentes perdem proteção, principalmente no bioma Pampa, cujo as características geomorfológicas influenciam os corpos hídricos que não necessariamente formam um curso d’água, já que pelo conceito apresentado, para assim ser, precisaria formar curso d’água.
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BUROCRACIA
O código ambiental não tem a função de criar procedimentos administrativos de licenciamento, coisa que cada órgão pode definir em seu âmbito de atuação. O objetivo do código é apontar diretrizes de políticas ambientais. Nesse sentido, não justifica alterar um código, como aponta o governador. Bastaria colocar em prática as diretrizes do Código Ambiental original.
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ÁRVORES
Art. 151. A exploração, o transporte, o depósito, a comercialização e o beneficiamento de produtos florestais da flora nativa dependerão de prévia autorização do órgão ambiental competente, salvo situações já previstas na legislação.
Ora, essa autorização pode ser dada praticamente como certa no atual contexto de facilitação ao qual o “órgão ambiental competente” está submetido. No caso do RS, trata-se da SEMA e da Fepam, ambas sob o controle do governo, que usa de poder sobre servidores de Estado para que os encaminhamentos sejam realizados conforme interesses da gestão estadual. É a porteira aberta para “passar a boiada”.
ALTERAÇÃO DO CÓDIGO ESTADUAL DE MEIO AMBIENTE
I. Com a alteração do Código Ambiental do RS, o governo Eduardo Leite retirou o conceito de Área Sujeita à Inundação da legislação, mantendo somente o conceito de Área Alagadiça de modo genérico e similar ao conceito de banhado. Além disso, no Capítulo IX referente ao Parcelamento do Solo, o texto original (11.520/2000) proibia o parcelamento de solo em áreas sujeitas à inundação independente de estrutura de drenagem. A nova lei flexibilizou o parcelamento de solo em áreas de inundação desde que assegurado o escoamento da água sem implicar em investimentos públicos para manutenção ou implantação de infraestrutura de drenagem;
Esta alteração não impede que empreendimentos de grande porte escoem água para locais inadequados, podendo, inclusive, aumentar o estresse hídrico das áreas de descarga. Além disso, a flexibilização em relação ao parcelamento do solo em área sujeita à inundação somada à retirada do conceito de várzea aumenta a pressão sob os ambientes que possuem características de absorver e amenizar o impacto das cheias.
II. No código ambiental original (2000) era definido como instrumento de planejamento ambiental os comitês de bacia hidrográfica cuja institucionalidade previa a discussão e participação direta nas ações de planejamento ambiental. No código ambiental substituto sequer são mencionados os comitês de bacia hidrográfica;
III. O Código Ambiental substituto estabelece a possibilidade de convênios privados para gestão de Unidades de Conservação, a exemplo de Cambará do Sul, que teve um aumento no valor do ingresso de acesso ao Parque e consequente impacto econômico negativo no município por falta de procura. O código ambiental original definia os convênios no sentido de auxiliar a preservação do ambiente natural com foco na orientação de entidades de agricultores, focando os convênios com as Universidades Públicas e Privadas.
IV. Ao retirar o reconhecimento das áreas definidas como Reservas da Biosfera pela Unesco, o código substituto enfraquece a proteção do bioma Mata Atlântica, dos geoparques da Quarta Colônia e Cânions do Sul. O geoparque da Quarta Colônia possui grande riqueza geológica e pode ser uma das maiores reservas naturais dentro do bioma Pampa. O Geoparque Cânions do Sul possui grande riqueza de cachoeiras, cavernas e florestas, sendo localizado no RS e SC. Poderia ser uma das maiores reservas naturais do bioma Mata Atlântica.
V. O primeiro código ambiental do RS (2000) define a água como um bem indispensável à vida e às atividades humanas e dotado de valor econômico, devendo ser considerado toda a fase do seu ciclo hidrológico devido à limitada e aleatória disponibilidade temporal e espacial. O código ambiental substituto do governo Leite exclui a definição de ciclo hidrológico, exclui a definição de água como bem indispensável e comum ao povo, regrando de forma genérica que as questões de uso da água serão definidas em nova legislação. A ausência de clareza em relação ao ciclo hidrológico da água no código ambiental substituto fragiliza todo o sistema de gerenciamento de recursos hídricos trazendo insegurança jurídica aos comitês de bacia hidrográfica e aos usuários de água, uma vez que o ciclo hidrológico abarca todo os períodos de disponibilidade da água, desde a abundância até a escassez.
Essa alteração também coloca o planejamento de proteção ambiental sob os interesses privados, quando esses encontram facilitações de governos, como ocorre na gestão de Eduardo Leite.
VI. Com relação a Licença por Adesão de Compromisso, o popular auto licenciamento, as atividades foram definidas em Resolução do Consema com destaque para as seguintes atividades: Silvicultura de Exóticas (pinus e eucaliptos), Aterro de Resíduos da Construção Civil, Fabricação de Material Plástico e Açude para Irrigação. Outro ponto da lei ambiental substituta é a possibilidade de contratar pessoas físicas ou jurídicas para realizar o licenciamento ambiental, prática usual em municípios pequenos que não possuem quadro técnico concursado, gerando conflitos em relação ao interesse público e ao interesse privado.
Cria um ambiente de negócios onde a proteção ambiental não é prioridade para que se garantam os lucros das operações, diferente de quando o licenciamento é feito por profissionais do Estado. A flexibilização no código substituto se destaca pelo somatório das mudanças. Com a retirada do conceito de várzea e a autorização de parcelamento de solo em área sujeita à inundação, somada ao autolicenciamento de aterros de resíduos da construção civil, criou-se um ambiente de negócios para transformar áreas que antes eram protegidas em áreas com ocupação de risco.
VII. Uma das justificativas para alteração do Código Ambiental do RS foi a atualização da lei com inclusão do aspecto das Mudanças Climáticas, porém, a nova lei gaúcha não possui nenhum alinhamento à Política Nacional sobre Mudança do Clima (12187/2009), citando a questão da mudança do clima somente no Comitê de Planejamento Energético do Estado.
VIII. Em relação às Áreas de Preservação Permanente (APPs), que são as matas no entorno de corpos hídricos, nascentes e banhados, o Novo Código Ambiental do RS (2019) flexibilizou o conceito e possibilidade de intervenção nessas áreas. No mesmo sentido de flexibilizar as intervenções nas APPs, o Governo sancionou a Lei que autoriza fazer uso das Áreas de Preservação Permanente para construção de açudes e barramentos, sem estabelecer limites e critérios, levando a grande perda da vegetação nativa que protege os rios. As APPs contribuem para o controle de erosão, evitam carreamento do solo para os rios e ainda ajudam a reter água e desacelerar a velocidade de escoamento.
IX. A alteração no conceito de nascente no código ambiental substituto flexibiliza a interpretação de nascentes com o distanciamento do compromisso técnico definindo que toda nascente deve iniciar um curso de água. Ao tratar desta maneira, talvez muitas nascentes percam a proteção, já que pelo conceito apresentado, para assim ser, precisa formar curso d’água. É conhecido que muitas nascentes não resultam em curso d’água, podem resultar em áreas alagadas e banhados.
2. DESCASO NA GESTÃO DE RECURSOS HÍDRICOS
I. Planos de Bacia: Instrumento de Planejamento da Bacia Hidrográfica em três Fases: A – diagnóstico e balanço hídrico com disponibilidade de água e demanda; B – Prognóstico, levando em consideração a dinâmica populacional e econômica e o uso e ocupação do solo e demais condicionantes da demanda futura pelo uso da água; C- apresenta o conjunto de ações necessárias e define o plano de ação para gestão dos recursos hídricos. O RS possui 11 Bacias com planos completos, 8 Bacias com planos incompletos e 6 Bacias sem Plano.
II. Plano Estadual de Recursos Hídricos: O RS possui um plano estadual de recursos hídricos aprovado em 2014. Atualmente, o Plano encontra-se em atualização sem previsão de divulgação e estagnado no gabinete da SEMA.
III. Comitês de Bacia Hidrográfica: Abandonados e excluídos do sistema de decisão e planejamento de recursos hídricos do Estado do RS. Comitês estão sem recursos e sem apoio técnico-administrativo há 9 anos. O principal instrumento de planejamento, discussão e tomada de decisão em relação a recursos hídricos e seus impactos sociais-econômicos estão abandonados.
IV. SEMA/DRHS: O Departamento de Recursos Hídricos conta com apenas 34 servidores e não implementou os instrumentos de gestão definidos na legislação estadual e federal (cobrança pelo uso e enquadramento-qualidade da água). No final de 2023, foi solicitado ao governo do Estado a contratação emergencial de 43 servidores. O processo (PROA) encontra-se parado sem perspectiva e retorno por parte do Gabinete da SEMA e da Casa Civil.
Traremos outros apontamentos, oportunamente. Salientamos que preferíamos ter apresentado esses - e outros - apontamentos durante o trâmite da proposta de alteração do código original que ajudamos a construir, mas não fomos convidados nem aceitos para o diálogo de um tema vital que é de nosso interesse e de interesse de todos. Infelizmente, as alterações foram impostas pelo governo, com apoio de sua base legislativa, e feitas de forma açodada. Identificamos muitos problemas que podem colocar nossos biomas e populações em risco. Também alertamos para o problema que já vem de muitos anos, que é a falta de implementação das diretrizes do código original. Esse problema agora está intensificado pelas alterações contidas no código substituto.
AGAPAN - Porto Alegre, 24 de maio de 2024
Veja, abaixo, como votaram os deputados estaduais no desmonte do código ambiental (PL 431/2019) e no projeto de lei que permite destruir APPs (PL 151/2023).
PL 431/2019, que aprovou o Código Ambiental substituto
PL 151/2023, que aprovou destruição de APPS
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