Leonardo Melgarejo*
Em sua história de vida, a Agapan vem mantendo ações alinhadas a seu lema básico: “A vida sempre em primeiro lugar”. Em decorrência disso, os esforços por ela despreendidos em 50 anos de trabalhos voluntários permitiram evidenciar que o sucesso das lutas em defesa da vida, lato senso, estão a exigir dedicação especial à proteção dos direitos humanos como elemento fundante da organização e mobilização social.
Com esta visão impunha-se o desafio de renovação e fortalecimento da entidade, por meio da ampliação de práticas destinadas a contribuir para a potencialização de esforços desenvolvidos por outras entidades e grupos, em suas lutas especificas, de forma a evidenciar conexão ecossistêmica entre elas e as causas ambientalistas.
Nesta perspectiva, as lutas de grupos comprometidos com a defesa da democracia, da constituição federal, do acesso a moradia, à terra, ao trabalho, à alimentação e contra o fascismo, se evidenciavam claramente alinhados ao lema da Agapan. Em outras palavras, a proteção dos ecossistemas, a luta contra os agrotóxicos, contra o envenenamento das águas, contra os desmandos de governos cooptados por interesses ameaçadores à vida, bem como a depredação ambiental e a mercantilização de bens comuns, entre outros tantos desafios históricos da Agapan, estavam a exigir nova abordagem e mais amplas articulações para mobilização da consciência coletiva.
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Com esta visão, o Grupo de Trabalho que orientou ações da Agapan, no período em que participei de seu núcleo executivo, buscou criar e fortalecer laços externos. Como exemplo, considere-se que, da realização de atividades em parceriainstigadas pela Agapan, criou-se o Coletivo A Cidade Que Queremos, desde então com atuação marcante na vida de Porto Alegre, bem como ampliou-se a participação de membros da organização, em eventos promovidos por terceiros. Como ilustração, reproduzo a seguir adaptação de documento preparado para curso de formadores realizado pela Comissão Pastoral da Terra, em abril de 2021. Articulando perspectivas desenvolvidas em encíclicas do Papa Francisco com lutas tradicionais da AGAPAN, em defesa da água e contra os agrotóxicos.
Agroecologia (Projeto Popular) X agronegócio (Projeto Neoliberal) – um conflito sócio econômico e dois projetos políticos -
Texto adaptado para a AGAPAN, a partir de material preparado para apresentação no 3º ENCONTRO do CURSO FORMAÇÃO MILITANTES E AGENTES SOCIAIS CPTRS, em 13 de abril de 2021.
Examinando os problemas da nossa casa comum, com a sucessão de crises que se abatem sobre a humanidade, na encíclica Laudato Si o Papa Francisco nos mostra que os grandes dramas da atualidade decorrem das posições que nós mesmos assumimos em relação a questões de fundamentação ética e moral.
Ele destaca ser falso o pressuposto de que, cada um buscando o melhor para si, haverá amplo processo de seleção e qualificação nas ações de todos, contribuindo para o Bem Comum. Na prática, a ideia de que uma “mão invisível” regularia os mercados competitivos, levando à seleção por competências que eliminaria os desperdícios e premiaria as práticas eficientes, se mostrou equivocada. Como todos sabemos, o domínio dos mercados está causando a destruição do planeta, das relações e dos valores essenciais à própria vida. Assim, as crises eco- sócio- ambientais, as pandemias e o aquecimento global, a retomada de movimentos totalitários e o desrespeito aos direitos humanos avançam como decorrência da adoção e manutenção de um modelo insustentável.
Na Encíclica Fratelli Tutti, usando a parábola do Bom Samaritano, o Papa Francisco alerta para as responsabilidades que nos chegam com o conhecimento dos fatos que nos cercam. Conhecimento traz responsabilidades, e a opção por não agir corresponde a tomar partido em favor dos mais fortes, ou dos mais violentos, em qualquer embate. Assim, a defesa do ambiente natural exige não só atenção para as causas que alimentam as necessidades dos desvalidos, como também o compromisso de apoio, para o enfrentamento de suas dificuldades.
Para o Papa Francisco, o posicionamento diante destas situações, onde há sofrimento e injustiça, mostrariam em que grupo cada um de nós, como ser humano, se Inclui. Francisco considera dois tipos básicos de pessoas: aquelas que se importam, se solidarizam, procuram ajudar a resolver os problemas, sejam eles quais forem, e independente de a quem eles atingem, e aquelas outras, que não enxergam, ou fingem não enxergar ou imaginam que os dramas alheios não lhes dizem respeito.
Por exemplo, temos os médicos aposentados que voltam aos hospitais, correndo risco de vida, para ajudar no tratamento dos doentes de Covid, e temos o Bolsonaro, que a respeito das mortes diz “E daí?”, diz “eu não sou coveiro”, diz “todos temos que morrer um dia”.
Pois bem, na perspectiva da ecologia teremos que escolher nosso grupo, levando em conta a dimensão da verdade oculta naquelas mensagens do Papa Francisco, tendo claro que elas se ajustam a grande parte das decisões que tomamos ao longo da vida.
Por exemplo, começando pelo básico da vida, começando pela água.
Sabemos que toda água que existe no planeta aqui está desde o inicio dos tempos. Ela simplesmente circula, e alimenta todas as formas de vida. Seu volume total, não cresce nem diminui. Não podemos “fazer água”, mas com certeza podemos destruir a água, matar a fonte da vida.
Vejam, o café que bebemos pela manhã carrega uma água que já foi bebida por dinossauros, já circulou no sangue de aves e peixes, fez ascender a seiva de plantas e acelerou a erosão de rochas, formando solos férteis. Sendo única, finita, e fundamental para todas as formas de vida, como podemos ficar omissos, ou ainda pior, como podemos contribuir para sua destruição?
No Brasil, o agronegócio empresarial utiliza cerca de um bilhão de litros de agrotóxicos por ano, todos os anos. Onde isso vai parar? Vai circular, na seiva das plantas e no sangue dos animais. Vai circular nos rios, e vai parar nos lagos, nos poços, nos reservatórios subterrâneos. Um bilhão de litros por ano! Em quanto tempo os reservatórios estarão envenenados? Vai depender de nós.
Como os venenos não desaparecem, e como em boa parte dos casos eles se transformam em substâncias ainda mais perigosas, que por vezes duram centenas de anos, como tóxicos, fica claro que com o tempo, e com as misturas de agrotóxicos, as águas dos ambientes onde os venenos são usados em larga escala tendem a ser mais perigosas, a cada ano que passa. Por isso, as regiões dominadas pelo agronegócio dependente dos venenos tendem a ser mais perigosas para a vida das pessoas, dos animais. Ali tendem a se concentrar doenças “que antes não existiam”. Pense nisso e em como isso se relaciona às mensagens do Papa Francisco.
Naquela visão economicista de que cada pessoa fazendo o melhor para si mesmo, em seu estabelecimento, haveria uma qualificação do que é feito em todos os estabelecimentos, há uma falha gritante: aquela ideia dá importância absoluta a cada um, e ignora todos os demais, no presente e no futuro, Na verdade, poderia até funcionar se cada um buscasse o melhor para si, respeitando o que é melhor para os outros. Se fosse assim, não seria possível envenenar a água rio acima, em respeito aos que precisarão dela, rio abaixo. Nem seria possível envenenar os pontos de recarga do Aquífero Guarani, em respeito aos habitantes do futuro, e assim por diante.
E existem muitas outras perspectivas a serem consideradas, envolvendo o envenenamento do solo, o desaparecimento das abelhas, o aquecimento global, a ampliação da miséria, da fome e da exploração dos povos.
Mas o básico está no que o Papa Francisco revelou na Laudato Si e talvez se aplica a todos os casos: aqueles que agem como os que envenenam as águas que outros vão beber, vivem de maneira pouco ética, pouco responsável. São também um péssimo exemplo, e como sabem disso, tratam de esconder e disfarçar seu papel nesta história. Promovem campanhas tipo o AGRO é POP, ajudam a eleger deputados da bancada ruralista, e assim por diante. São imorais, diria o Papa.
Mas e quanto aos outros, aqueles que, percebendo isso, se calam, não se colocam? São cúmplices, e assim participam do grupo de pessoas que não se identificam com a mensagem da Fratelo Tutti?
A consciência é um processo interior, coisa de cada um. Mas a verdade revelada, compreendida, traz responsabilidades, e cada um terá que decidir quando e o que fazer, como se comportar diante da realidade. E isto vale também para os grupos. O que é uma causa ambientalista, desconectada das lutas por alimento terra, trabalho e moradia?
O que dizer do trabalho, da geração de rendas para manter a família, se só existem políticas públicas, incentivos de governo, créditos bancários e orientações de cientistas, para expansão de um modelo de agricultura que envenena as águas, os solos e os corpos? Como devem os ambientalistas se posicionar, diante de governos que, por suas ações e omissões, não deixam opções aos agricultores? Como pode ser antiética e imoral auma família que adota o modelo patrocinado pelo Governo, se é só isso que o Governo apresenta como alternativa, para garantia de alimentação aos filhos e avós?
E ai está o problema. Precisamos mudar o governo.
Estamos sendo enganados por pessoas, grupos e lideranças imorais e antiéticas, que nos impedem ou pelo menos nos dificultam em muito a adoção de modelos de agricultura mais saudáveis em relação ao presente e ao futuro, ambientalmente corretos e amistosos à vida.
As orientações de base agroecológica, que assim são desvalorizadas, constituem alternativas mais eficazes, sob todo e qualquer ponto de vista, se dermos prioridade à saúde, à agricultura familiar e a uma visão de longo prazo com relação à qualidade de vida de nossas famílias. Elas contrariam a visão das monoculturas dependentes de agrotóxicos em várias perspectivas, e só não se expandem porque estamos sendo enganados por agentes de governo, políticos e cientistas que defendem interesses contrários aos da vida, em seu sentido mais amplo. Como ampliar nossas forças, se não ajudando no esclarecimento e no fortalecimento de outros, ameaçados pelas mesmas causas?
Sim, precisamos de ativismo que leve à formulação de políticas publicas a nosso favor, portanto precisamos de políticos a nosso favor.
Vejam: Se um agricultor caminha em sua lavoura de feijão ou de soja, ou mandioca, ou melancia, e enxerga um foco de lagartas, pode marcar o local e fazer o controle dirigido àquele ponto especifico, antes do problema se expandir e causar danos importantes. Para isso, ele tem que caminhar na lavoura. Encontrando o problema, pode usar vários métodos, inclusive aplicando inseticida, naquele local e não em outros. Mas se a lavoura tiver milhares de hectares, ela não será de um agricultor familiar. E o empresário que a explora sequer vai contratar empregados para caminhar na lavoura. Ele vai preferir, por via das duvidas, já que pode haver lagarta aqui e ali, jogar o veneno de avião, nos 3 mil hectares. E no Brasil existem lavouras de cem mil hectares. Bom, estes empresários vão preferir talvez alguma semente transgênica que traga proteínas inseticidas que matem as lagartas que eventualmente se aventurem por ali. Ou uma semente transgênica que alem disso, além de trazer o veneno para dentro da planta, permita resistência a herbicidas, que assim também poderão ser jogados de avião. Com o tempo, surgem lagartas que não morrem com aquelas toxinas, e o avião precisa jogar inseticidas. E surgem plantas como a buva, o azevém a corda de viola, que não morrem com aqueles herbicidas, o avião precisa fazer novas aplicações. Para facilitar o negócio daqueles empresários, embora os estudos do Ministério da Saúde não nos informem dos riscos de contato com as misturas de venenos, o Ministério da Agricultura permite eu elas sejam feitas , nos tanques de pulverização. Resulta que a combinação real é feita nas águas dos rios, dos lagos, dos nossos corpos. Simples assim: buscando o melhor para si, o empresário deste modelo de agronegócio pode jogar coquetéis venenosos, sem olhar para o chão, e sem se preocupar com os outros. E tudo vai escorrer, e vai parar na água e nas águas que estão em todos os organismos vivos.
E o empresário vai pressionar seus deputados, para conseguir mudanças na legislação ambiental, que permitam não apenas ocultar estes problemas, como ampliá-los, derrubando áreas de reserva florestal, invadindo terras indígenas e assim por diante.
Assim, na perspectiva dos ambientalistas, a busca do melhor para si, não pode ser deixada livre, e muito menos pode ser estimulada pelo governo. Da mesma forma, as lutas pela qualidade da água, dos alimentos, em defesa dos povos indígenas e da reforma agrária, se incluem nas lutas contra um modelo do agronegócio que ameaça a vida em primeiro lugar.
A lua ambiental precisa explicitar sua adesão às lutas pela reforma agrária, e pela implementação da PNARA, que estabelece mecanismos para valorização e expansão das lavouras de base agroecológica, que pede instrumentos de apoio à comercialização e a realização de campanhas de esclarecimento para toda a sociedade, sobre a importância da agricultura familiar e da agroecologia.
Mas isso não está avançando. Ao contrario, nunca houve tanto retrocesso nem tanto veneno, nem tanta desfaçatez e pouca vergonha relacionada a seu uso.
Agora em março de 2021 agricultores orgânicos de Nova Santa Rita, que todos os anos perdem parte das safras com a deriva de venenos aplicados por avião, em lavouras de arroz da vizinhança, foram literalmente atacados. Dez pessoas tiveram que procurar atendimento médico, uma vaca abortou, muitos tiveram diarreia, dores de cabeça, coceira nos braços e nos olhos. E o avião, que deu rasante sobre as casas, não era adaptado para a pulverização, mas o cheiro de veneno até o prefeito registrou. As pessoas se assustaram e os sintomas que apareceram agora se transformam em medo para o futuro. Como isso pode acontecer, e o que isso nos diz?
Na opinião do Fórum Gaúcho de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos, da Agapan e do Consea, isso nos diz que o agronegócio está agindo como se confiasse que com este governo, e com estas bancadas nas assembleias e no congresso nacional, estarão protegidos, façam o que fizerem.
Mas eles estão errados. A sociedade tomará partido daqueles que se empenham em defesa da vida, em defesa das águas, em defesa do futuro. É só uma questão de tempo para que, cada um fazendo sua parte, levando em conta os outros, predomine um posicionamento ético e moralmente respeitoso, à vida, conforme proposto pelos princípios da agroecologia e por lideranças de todas as religiões verdadeiramente comprometidas com a justiça, o bem estar social e a qualidade de vida de todos, neste planeta.
*Conselheiro e ex-presidente da Agapan. Engenheiro Agronômo e mestre em Economia Rural pela UFRGS, doutor em Engenharia de Produção pela UFSC. Foi representante do Ministério do Desenvolvimento Agrário na CTNBio. Faz parte da coordenação do Fórum Gaúcho de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos e é colaborador da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e pela Vida, do Movimento Ciência Cidadã e da UCSNAL.
Este artigo reflete a opinião do autor, não necessariamente da Agapan.
Associados podem submeter artigos para publicação através do e-mail agapan@agapan.org.br
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